assim vivem as corruíras (2018)

 

(ensaio publicado na revista "ara" da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, número 4 - outono e inverno de 2018)

 

O ESPAÇO TOMADO PELOS MIÚDOS

 

O que mais há na terra, é paisagem.

José Saramago (2013, p.9)

 
 

O espaço se toma pelas pessoas. Por mais que se coíba esse seu furto legítimo pelos que nele vivem, o formigueiro humano acaba se impondo. Eliminam-se algumas formigas, mas outras trepam por baixo da calça. Escapam o risco de amor na árvore, a pintura no muro, o fungo tolerado ou a simples disposição do objeto deslocado. Tudo o que é tratado com descaso pelo poder institucional, mas que imprime ao lugar o que nele pode haver de caseiro, reconhecível.

 
 

E tudo se liga ao chão. O povo institucionalizado se eleva. O povo miúdo se agarra ao térreo, à calçada, ao asfalto.

 
 

A corruíra é boa metáfora. É pássaro que sabe voar, mas gosta de andar. Miúdo, rápido, fuçador de cantinhos. Cor de miscigenado, camuflado na terra. Seu outro nome é garrincha, outro rápido, que praticou sua arte nos pequenos espaços. Herói nacional. Herói improvável.

 
 

Bicho pequeno, tem que ficar esperto. Sempre alerta.

 
 

 
 

Rural e urbano

 
 

O confronto do urbano com o rural é armadilha quase inevitável. Não se identifica, entretanto, ao mudar o olhar deste para aquele, alteração da própria atitude estética. As formas do campo, composição "fractal", versus as da cidade, composição "esquadro", aparentemente tão distintas, não se diferenciam de fato na busca da abstração. No tema talvez não se possa dizer o mesmo, já que a própria ocupação do espaço é distinta. Na cidade o espaço é exíguo, para as camadas menos favorecidas, e no campo ele sobra. Na cidade é mutante. No campo, permanente. Na cidade, realidade. No campo, idílio.

 
 

E, em qualquer canto, estão as marcas dos miúdos.

 
 
 

Para o muito alto

 
 

Independente da fé de quem registra, as formas populares de manifestação da crença no sagrado são sempre encantadoras: o salmo pintado na pedra da beira do caminho; a maçã de amarração de amor, Eva de matriz africana, em cama de flores do chão; ou a pequena capela de múltiplas crenças, sincrética, lembrança da morte de alguém em desastre de carro naquele ponto da estrada, invadida pela trepadeira. Tudo é doçura.

 
 

A dona da casa virada em dona da cidade

 
 

Uma das maiores transformações do século XX, a condição social da mulher traz alterações significativas para a paisagem urbana. A outrora protagonista quase exclusiva da vida privada realizou importante movimento em direção à vida pública, embora não tenha (ainda?) abandonado o privado na (des)medida masculina.

 
 

A fotografia urbana se influencia por esse fenômeno, tanto naquelas em que as mulheres são representadas, em que aparecem no mais das vezes sozinhas ou acompanhadas de outras; quanto naquelas em que as marcas de sua passagem ou ausência se fazem notar, como no menor cuidado recente às manutenções das casas.

 
 

Do alto

 
 

No espaço privado a tecnologia ocupa posição dominadora. Em cada cômodo da casa há sempre dois ou mais dispositivos eletrônicos, mas essa dominação tem expandido seus tentáculos para fora. Nas ruas das cidades, não mais são livres as corruíras.

 
 

Sorrateiras, imaginavam-se solitárias ou cercadas de iguais no seu ciscar. Agora já sabem que, em cada alto, há uma câmera que, sob o pretexto de protegê-las e à cidade, na verdade as vigia. Não há mais clandestinidade peralta nos seus atos.

 
 

Em cada ponto, uma máquina delatora. Só o grande número protege os miúdos que, anônimos e encapuzados, perdem-se na multidão.

 
 

Por fim

 
 

A identificação dos fundamentos do espaço praticado pela população economicamente menos poderosa, quando se olha por esta fotografia, mostra que é apenas aparente o efeito do tamanho da cidade ou da condição rural versus urbana da mesma. Ficam mais claras, nas marcas das ruas, as influências da improvisação das necessidades da vida diária e o atrevimento estético, religioso e de encontro entre as pessoas, com que a população de corruíras ousa invadir o espaço institucional, armada de suas inconveniências de classe desfavorecida.

 
 

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Referência bibliográfica

 
 

SARAMAGO, José. Levantado do Chão. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.